domingo

A segunda vez que te conheci



Hoje foi um dia legal, leve, a cidade está tranquila. A ansiedade do natal já acabou. Nessa época do ano a contagem regressiva para a compra de presentes me deprime. No Natal a cidade muda. Uma pessoa mataria por uma vaga de estacionamento, voaria sobre a outra pra furar a fila do supermercado. Hoje, domingo, a cidade está calma e decidi dar uma caminhada pelo Parque do Ibirapuera. Levei uma sacola, o livro - A segunda vez que te conheci de Marcelo Rubens Paiva, comprei água no mercado deserto (àgua - deserto!?). Entrei pelo portão 9, escondido entre arvóres apertei o passo ansioso por quietude, aconchego. Sento debaixo de uma Sibipiruna enfeitada com luzes de natal. Desabo sobre um filete de sombra, tiro o tênis de cânhamo, a meia soquete da nike, e estico os pés de Hobbit sobre o sol. Mergulho na história de Raul. Nas pausas fumo um cigarro de palha e escuto as histórias do parque. Um grupo de ciclistas realizava um encontro. Enxergava com os olhos da nuca. Gargalhavam e brindavam a última pedalada do ano de 2008 e a manifestação na avenida paulista (ciclistas pedalaram pelados pela avenida pedindo políticas públicas para a construção de ciclovias na cidade). Panetone e cerveja sobre a bandeira do Brasil. Foi isso o que vi. Ouvi um comentário sobre o meu cigarro de palha e sobre a liberação da maconha no Brasil "Quando eu fui pra Amsterdam a galera fuma nos parques, é tudo liberado..." Voltei ao livro. Capítulo 1 ficou pra trás, e o dois, e três, e quatro também. Nova parada, levanto a cabeça pra olhar o lago. Duas mulheres, loira e morena, sentam a minha esquerda. Aproveitam a grande sombra da árvore que protege eu, as duas mulheres e um casal deitado com a filha. Falavam de um Arthur ou Artur. Promotor da república, jovem, inteligente, esperto, "sabe todos os caminhos da cidade..." (mulheres apreciam homens que conhecem a cidade de SP). A loira, magra, óculos escuros que cobriam quase todo rosto, era bonita. O top preto marcava o seu corpo malhado. A alça branca do sutiã caía sobre o ombro cor de chocolate, moreninho. Ela fechou o pacote de adjetivos com a frase "Ele é lá da minha cidade..." Volto pro livro e agora surgem novos personagens. Ariela, Fabi e Carla. Repito três vezes uma poesia do personagem Raul "Com ela repartiria". Me divirto com o livro, Raul agora é poeta e filósofo. Pausa. Os ciclistas agora pedalam e circuitam as árvores. Caem e troçam sobre os tombos na grama do parque. A dupla feminina de adjetivos masculinos não está mais ali. Famílias vão e vem. Crianças apostam corrida, usam a Sibipiruna pra marcar a distância entre o começo e o final da brincadeira. Os passos pequenos marcam a terra úmida. Gritam quando ganham e quando perdem. A mãe dá força para o corredor "Vai Fábio, corre meu filho..." Correm sob a luz das dezessete horas. Bebo água fluoretada, no rótulo dizem que é de Petrópolis, R$1,59 a garrafa de 1,5l. Li mais um pouco, até as dezenove horas. Levantei enferrujado, caminhei pela trilha de terra até ela virar cimento e asfalto. Olhei o por do sol da rua Joaquim Floriano. Sentei num bar, nem vi o nome, pedi um chope, caneca de 450ml, comi pastel de vento, olhei a mesa ao lado e retornei a história de Raul. Ele agencia profissionais femininas de ocupação 5.198, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho: meretriz, biscate, garota de programa. Pausa no bar. Um casal discute a relação. Elas eram fortes e másculas. Três pessoas na mesa: o casal e um amigo, mediador da discussão e termômetro caso a coisa esquentasse por ali. Acusadora e réu. Traição e desamor eram pautas da conversa. "Não me adaptei ao celular novo, por isso que não te liguei, não enviei mensagem de texto, esse telefone é uma bosta..." disse a acusada. As namoradas discutiam sobre um churrasco demorado, sobre o nome da traição confessada quando ainda estava no parque, ou na Joaquim Floriano, comprando água, não sei. O nome era Érica. Hoje foi o dia terminante que decidiu sobre o namoro de sete meses. O amigo pacificou a relação, quase amizade. Novamente usei os olhos da nuca. A mulher de vestido listrado, vermelho e branco, balançava incessantemente o pé esquerdo, anelante por respostas, por uma resposta. Ela veio no fim, com a conta dividida por três: R$ 142,00. "Passa aqui nesse cartão o que sobrar", ela disse. O pé continuava aflito, a sandália caiu debaixo da mesa, ela não ligou, pegou o cartão de volta, guardou na bolsa e levantou. A então ex, amiga, carioca, vestia uma calça preta e uma blusa laranja. O cabelo era curto e ruivo. "Quero a minha Corrrtesia Garrrçon!" clamou a moça. Desajeitado ele fingiu não entender, deu uma risada forçada e correu pra dentro do bar. Voltou com uma caneca de chope. A mesa agora só tinha uma pessoa. Ela bebeu rápido a cortesia, pegou a bolsa, levantou com dificuldade da cadeira confortável, abriu o telefone - rádio, um bip e começou a falar com alguém no Rio de Janeiro, perguntou se fez sol, lá do Rio ouvi "Um beijo e fica com Deus Filha..." Andou na direção contrária da ex e do amigo. Um casaco amarrado a bolsa arrastava a manga pelo chão cinza. Fico com a minha resposta para a pergunta do autor "O amor acaba?". Descubra na história trágica, irônica e possível de Raul. Parei de ouvir as histórias da cidade. Fim do livro de Marcelo Rubens Paiva.